

Para a psicanálise, o luto é um processo natural do sujeito diante da perda. Ao mesmo tempo, é uma ruptura que separa a pessoa do objeto e a engaja em um percurso inefável de desordem e vazio. De acordo com Freud, perder alguém querido é como ser apartado de uma série de coisas e continuar no mesmo lugar.
Trata-se de um percurso que, segundo ele, exige trabalho — trabalho psíquico. Através de um entrelaçamento subjetivo e particular, as recordações ligadas ao objeto perdido são revisitadas uma a uma, em um dispêndio de energia quase hiperfocal, no qual o sujeito normalmente investe de maneira intensa em suas lembranças.
O luto também é um verbo que envolve resistência. Não é fácil deixar de investir no objeto amado, mesmo que este já não exista materialmente. É como se o externo perdido invadisse o sujeito em seu íntimo, imprimindo no ego a sombra de quem partiu (FREUD, 1996).
Uma radicalidade que suscita um cuidado em recontar o infindável de cada vivência, na tentativa de reencaminhar para outros afetos o que, naquele instante, é pura angústia (Dunker, 2005). O estar em luto é viver um outro tempo, em que aceitação e recusa se alternam, em uma tessitura pendular. Como diz Rosa Maria Monteiro:
"A morte é uma fenda temporal, onde a rotina cai como purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar, por um instante, pela fresta da verdade monumental, ardente e impassível."
Mas que tempo é esse que põe em suspenso toda a materialidade do agora, em um irremediável estar incompleto, desobedecendo prazos generalizantes e se mostrando avesso à cronologia produtiva do capital?
Maria Rita Khel dá pistas quando fala de Kairós, que, em grego, significa 'momento oportuno', também conhecido na Bíblia como 'o tempo de Deus'. Este diverge do tempo cronológico, determinado socialmente, por preservar a singularidade de cada duração. Por isso, não pode ser medido no relógio nem prescrito ao outro, mesmo que as experiências sejam muito semelhantes. Collete Soller define esse outro tempo como o tempo de compreender, no percurso de uma análise, em que a subjetividade (e o inconsciente) orientam o tamanho do passo.
Porque cada vivência é também um reencontro de tempos, com o que se foi, com o que se é e, principalmente, com o que não se entende. E o luto é a tentativa de recriação simbólica dessa conjugação.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. José Carlos de Araújo. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
DUNKER, Christian. Lutos finitos e infinitos. São Paulo: Ática, 2005.
MONTERO, Rosa. A ridícula ideia de nunca mais te ver. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2013.
KHEL, Maria Rita. O tempo e o cão. São Paulo: Editora 34, 2018.
Fotografia: @filoflif
Psicóloga: Giscelle Spindola
CRP-22/02048
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