
A infância: um conceito recente na história
Quando pensamos na infância como uma fase única e protegida, é fácil imaginar que essa ideia sempre existiu. Mas a verdade é que o conceito moderno de infância é uma construção histórica relativamente recente.
Na Idade Média, as crianças eram tratadas como “mini-adultos”. Não havia roupas infantis diferenciadas; assim que possível, elas eram vestidas como adultos e inseridas no trabalho e nas responsabilidades familiares. O historiador francês Philippe Ariès, no clássico Centuries of Childhood (1960), afirma:
“A consciência da particularidade da infância é uma aquisição cultural que se consolidou apenas nos tempos modernos.”
Segundo Ariès, a mudança começa a ocorrer entre os séculos XVII e XVIII, com a redução da mortalidade infantil, a expansão da escolarização e a valorização do núcleo familiar. Foi nesse momento que se passou a reconhecer a infância como um período distinto e essencial para o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo.
Pesquisas mais recentes, como as do historiador Nicholas Orme (Medieval Children, 2001), complementam o quadro, mostrando que, apesar das adversidades, já havia demonstrações de afeto, luto pela perda de filhos e até brinquedos rudimentares. No entanto, o brincar, quando existia, quase sempre reproduzia papéis adultos — bonecas representavam mães, carrinhos simulavam trabalhos de transporte, e jogos imitavam profissões.
Essa compreensão moderna é fundamental: se reconhecemos a infância como um período único, entendemos também a importância de oferecer estímulos adequados e proteção contra influências nocivas. Quando trazemos comportamentos, responsabilidades e padrões da vida adulta para o universo infantil, comprometemos um estágio crucial do desenvolvimento neurológico e emocional.
O vídeo de Felca e o alerta sobre a adultização infantil
Nos últimos meses, um vídeo publicado pelo youtuber Felca chamou atenção nas redes sociais ao discutir as consequências da adultização infantil e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes na internet.
No vídeo, Felca expõe exemplos concretos de como jovens são mostrados em redes como TikTok, YouTube e Instagram:
- Desafios que envolvem bebidas alcoólicas ou comportamentos de risco.
- Danças e poses sexualizadas, incompatíveis com a idade.
- Estímulo à exibição do corpo como forma de validação.
Essas práticas não apenas colocam em risco os jovens que produzem esse conteúdo, mas também influenciam outras crianças e adolescentes, que passam a imitar esses comportamentos para se encaixar ou ganhar visibilidade.
O ponto central levantado é que, mesmo quando o conteúdo não tem intenção sexualizada, ele pode ser consumido por pedófilos. Isso acontece porque qualquer material com presença de crianças ou adolescentes pode ser buscado e compartilhado de forma criminosa, ainda que tenha sido publicado como algo “inocente”.
A perspectiva da psicologia: Winnicott e o falso self
O vídeo contou com a participação de uma psicóloga, que trouxe a perspectiva winnicottiana. Donald Winnicott, pediatra e psicanalista, descreveu o falso self como uma adaptação defensiva: a criança aprende a se comportar de forma a atender expectativas externas, escondendo seu verdadeiro eu para preservar vínculos ou evitar conflitos.
No contexto da adultização digital:
- A criança percebe que o corpo e a aparência geram mais atenção e engajamento.
- Ela começa a moldar sua comunicação para reforçar esse aspecto, reduzindo a expressão de pensamentos, sentimentos e criatividade.
- Essa forma de interação limita o desenvolvimento emocional e fragiliza a construção da identidade.
Pesquisas indicam que adolescentes expostos a conteúdos sexualizados antes dos 15 anos apresentam mais sintomas de ansiedade, depressão e distorção da autoimagem (Journal of Adolescent Health, 2020).
Dados sobre uso de redes sociais e exposição precoce
O cenário de exposição é amplo e precoce. No Brasil, pesquisas indicam:
O TikTok é especialmente presente na rotina de menores:
Esse tempo de tela elevado, aliado ao consumo de tendências globais, cria um ambiente de constante comparação e pressão estética. A busca por curtidas e validação online reforça comportamentos de performance e reduz experiências genuínas.
Pedofilia: atração, comportamento e prevenção
Um ponto sensível abordado no vídeo e amplamente debatido é a pedofilia. O DSM-5 define como uma atração sexual persistente por crianças pré-púberes (até cerca de 13 anos), presente por pelo menos seis meses, em indivíduos com diferença de idade mínima de cinco anos.
Importante diferenciar: atração não é sinônimo de abuso. Muitos especialistas defendem que, assim como outros impulsos, ela pode ser controlada e tratada na terapia — prevenindo crimes e protegendo potenciais vítimas.
Estudos de neuroimagem, como os conduzidos por Cantor et al. (2008), identificam diferenças cerebrais em pedófilos, incluindo alterações no córtex pré-frontal. Esses achados apontam para fatores biológicos, mas não eliminam a responsabilidade individual sobre os atos.
O papel da psicoterapia online
A psicoterapia online surge como ferramenta fundamental, pois oferece:
- Acesso a profissionais especializados sem barreiras geográficas.
- Sigilo e segurança, o que é essencial para lidar com temas sensíveis.
- Orientação prática para pais, responsáveis e educadores.
Alex Baptista, CEO do Terappia, afirma:
“Proteger a infância é um trabalho coletivo — famílias e psicólogos precisam caminhar juntos.”
Orientações para pais e responsáveis
Proteger crianças na era digital exige ação conjunta. Algumas estratégias eficazes incluem:
1. Supervisão ativa
Acompanhar e conhecer o conteúdo que a criança consome e publica é essencial. Aplicativos de controle parental podem ajudar, mas o diálogo contínuo é o fator mais protetor.
2. Diálogo aberto e educativo
Conversar sobre riscos e explicar por que certos conteúdos não são apropriados para a idade fortalece a autonomia e a capacidade de fazer escolhas seguras.
3. Valorização do brincar livre
Atividades fora das telas permitem que a criança explore interesses e desenvolva habilidades sem a pressão de se expor.
4. Educação digital
Ensinar sobre privacidade, limites e comportamento seguro online deve ser parte da formação desde cedo.
5. Apoio psicológico contínuo
Mesmo sem sinais evidentes de sofrimento, a psicoterapia pode ajudar a criança a desenvolver autoestima e senso de identidade saudáveis.
Conclusão
A infância, como a conhecemos hoje, é um conceito recente e precioso. Adultização precoce e exposição digital ameaçam seu propósito fundamental: ser um tempo de crescimento protegido, aprendizado e descoberta.
O vídeo de Felca contribuiu para ampliar esse debate, mostrando que, além de pais e educadores, toda a sociedade deve estar atenta. A psicoterapia online oferece uma ponte segura entre famílias e profissionais, ajudando a orientar, prevenir e proteger.
Referências





