
A Potência do Conviver
No CAPS, a convivência é como um campo fértil, onde cada semente cresce à sua maneira. É ali que A. J. ri das piadas de R., e assim esquece por alguns momentos dos conflitos familiares. I., ao lado, escolhe uma gravura para colorir, e, entre as cores, revela os tons de seus dias a Psi. C., que escuta e acolhe. Ao lado, J. compartilha suas dores com A., que chega com a atividade que planejou com carinho para o Ajuda Mútua, enquanto psi M. acolhe, preocupada, a empolgação de AD. com um novo projeto. Psi I., com sua delicadeza, pinta as unhas de C., ouvindo suas histórias cheias de detalhes e memórias enquanto a tranquiliza com gestos simples e acolhedores. O., com um brilho nos olhos, conta sobre sua mãe, o papagaio, o quarto cheio de bonecas que guarda como memórias vivas.
JM. revela o carinho pela filha, da qual não tem notícias há 20 anos, relembra seu tempo como cozinheiro num importante hotel da cidade, enquanto escolhe com psi H., que já dedilha o violão, e CR., o repertório daquele dia, no grupo de música. R., já chega entoando melodias antigas e cheias de vida. V., um pouco desorganizada, encontra na convivência um ritmo para alinhar pensamentos e acalmar sua velocidade. M. compartilha a saudade de sua amiga que partiu, encontrando nas conversas um espaço para acolher seu luto e a saudade tão viva. RE. descreve as vozes que ouve e compartilha as estratégias que a ajudam a enfrentá-las. RS. sorri enquanto abre o brechó, E. costura com cuidado e R., com suas rimas e piadas, arranca gargalhadas que fazem leve a manhã de todos. O ouvir, no CAPS, é tão ativo quanto o falar.
FR. questiona o sistema, a razão de tudo e de todos, trazendo reflexões para a convivência. Cada um que chega ocupa o seu espaço de ser. Ali, na convivência, tudo se encontra, tudo se mistura: o riso, o desabafo, o silêncio, a arte. É um lugar onde a horizontalidade é vivida, não apenas falada. Naquela mesa acontece o verdadeiro cuidado.
Na convivência, eles experimentam o estar-com e o fazer junto. Compartilham o cotidiano, as pequenas vitórias e as grandes batalhas. Eles se respeitam, mesmo nas diferenças. Cantam, brincam, descansam, e às vezes, apenas ficam em silêncio. É ali que o cuidado se desenha, entre uma refeição compartilhada e um olhar compreensivo. A convivência no CAPS é um dispositivo de cuidado que transcende a técnica. É afeto, é escuta, é troca. É um espaço de criação coletiva, onde cada um pode ser o que é, no tempo que precisa. É o viver e deixar viver, o verdadeiro sentido de estar junto. Todo CAPS deveria ter um espaço assim, onde o conviver é o coração pulsante do cuidado.
Segundo Resende (2019), o cuidado em saúde mental exige um posicionamento ético e político que reconheça a alteridade e promova a autonomia. Esse modelo rompe com a lógica da medicalização e da institucionalização, centrando-se na convivência como prática de resistência às exclusões impostas pela sociedade do desempenho (Han, 2015). No entanto, no CAPS II do Paranoá, identificou-se um desafio significativo: a presença de frequentadores seniors, ou seja, aqueles que utilizam o serviço por mais de uma década, e que revelam, em suas narrativas, a insuficiência de redes de apoio externas. A frase de um desses frequentadores, "minha família não me quer, não consigo mais trabalhar por conta da idade... não há mais outro lugar para mim", sintetiza uma realidade que questiona o papel do território - e da sociedade como um todo- na sua integração com o CAPS a fim de promover e garantir de autonomia e inclusão social.
Dessa forma, este relatório busca explorar como as práticas cotidianas no CAPS II do Paranoá revelam o potencial transformador da convivência, analisando também seus desafios éticos, políticos e clínicos.
O estágio no CAPS revelou-se uma experiência profundamente enriquecedora, permitindo uma compreensão ampliada sobre a complexidade do cuidado em saúde mental no contexto psicossocial. Por meio dos relatos e vivências compartilhadas, foi possível observar a potência da convivência como dispositivo terapêutico, que transcende a técnica e incorpora dimensões éticas, políticas e clínicas.
Nesse sentido, as vivências no CAPS II Paranoá demonstraram que a convivência, integrada ao cotidiano e a uma clínica ampliada, promove a desinstitucionalização ao reconhecer o sujeito em sua totalidade e ao articular ações que valorizam a singularidade e a autonomia, possibilitando que os usuários encontrem espaços de pertencimento e expressão. Tendo o cotidiano como clínica, reafirma-se o CAPS como um espaço de cuidado integral.
Os relatos dos frequentadores e a interação nos grupos evidenciaram como o estar-com, fazer-junto e deixar-ser são práticas centrais na construção de vínculos, no fortalecimento da autonomia e na ressignificação de experiências de sofrimento. O espaço da convivência mostrou-se essencial para promover encontros horizontais, onde usuários, familiares e profissionais constroem, juntos, estratégias de cuidado pautadas na escuta, na troca e na empatia.
Han, B. C. (2015). Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada.
Resende, T. I. M. (2015). Eis-me aqui: A convivência como dispositivo de cuidado no campo da saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Brasília, Brasília, DF.





