
Vivemos em uma sociedade estruturada para nos manter funcionais, silenciosas e adaptáveis às engrenagens da produtividade. Somos ensinadas a caber — no tempo, no corpo, na norma, na expectativa. O sofrimento, quando surge, é quase sempre tratado como falha individual. Mas o que acontece quando começamos a olhar para dentro de nós mesmes não como forma de se ajustar, e sim como forma de resistir?
Convido você a pensar o autoconhecimento não como uma prática individualista de autoaperfeiçoamento, mas como umprocesso de autoconsciência crítica, ancorado na realidade concreta da vida. Não se trata de introspecção isolada, mas de um gesto insurgente de confronto com as condições históricas que moldam quem somos e como vivemos.
Segundo apsicologia histórico-cultural, desenvolvida a partir das ideias deLev Vygotsky, o autoconhecimento — ou mais precisamente, aautoconsciência—não nasce espontaneamente dentro do indivíduo. Ele emerge no processo de apropriação das relações sociais, da linguagem e da cultura. Somos, desde o início, constituídes na relação com o outro. É por meio da mediação com o mundo externo que formamos a capacidade de voltar o olhar para nós mesmas.
O desenvolvimento da autoconsciência exige, portanto,condições sociais que favoreçam a reflexão crítica. Mas o que acontece quando essas condições nos são sistematicamente negadas? Quando as narrativas dominantes silenciam nossas experiências, desvalorizam nossos saberes e patologizam nossas reações?
É nesse ponto que o autoconhecimento se torna umato político de reapropriação subjetiva, uma prática de desalienação.
Nomear o que nos atravessa: linguagem como instrumento de liberdade
Parabell hooks, pensar criticamente sobre si e sobre o mundo é umaprática de liberdade. EmEnsinando a Transgredir, ela afirma que a educação verdadeiramente emancipadora é aquela que nos permitenomear nossas experiências, especialmente as experiências de opressão. Nomear é o primeiro passo para transformar.
Essa ideia converge com a visão de Vygotsky, para quem a linguagem é o principal instrumento de mediação do pensamento e da consciência. Sem linguagem, não há pensamento elaborado — e sem pensamento elaborado,não há como compreender ou transformar o sofrimento.
Refletir, nesse sentido, ésuperar o nível imediato da experiênciae acessar suas determinações mais amplas — econômicas, raciais, de gênero, de classe. Ao fazer isso, deixamos de ser reféns de explicações individualizantes e passamos a enxergar nosso sofrimento como resposta legítima a um mundo que, muitas vezes,nos violenta de maneira sistemática.
O corpo como território: entre desejo e dominação
A filósofaSuely Rolnikafirma que o corpo é o primeiro território de dominação em contextos coloniais. Somos ensinades a desconfiar do nosso desejo, a calar a dor, a ignorar os sinais do corpo. Isso tem implicações diretas na constituição da subjetividade: quando nos afastamos de nossas sensações, também nos afastamos de nós mesmes.
Nesse sentido, buscar autoconhecimentonão é uma fuga do mundo, mas umareconexão com a própria história, com os próprios afetos, com os desejos silenciados. É desobedecer a uma ordem colonial e patriarcal que insiste em nos alienar de nós mesmes.
A clínica como território de escuta crítica e reconstrução de sentido
Quando comprometida com uma perspectiva crítica e interseccional, a clínica psicológica deixa de ser um lugar de adaptação e passa a serum espaço de resistência. A escuta ativa e implicada permite que o sujeito articule suas experiências à história social que o atravessa. E é nesse processo quea autoconsciência se amplia, que os traumas podem ser nomeados e ressignificados, que as potências podem ser restauradas. É é ali que muites de nós, pela primeira vez, somos autorizades a sentir, a desejar, a elaborar — sem culpa, sem julgamento e sem prazo estabelecido.
Autoconhecimento como reexistência
Vivemos tempos marcados por discursos motivacionais que culpabilizam quem adoece e idealizam o “autocuidado” como um produto de consumo. Nessa lógica, o autoconhecimento é apresentado como performance — mais uma tarefa a cumprir para ser aceita. Mas há outros caminhos que relacionam a autoreflexão com a ampliação de consciência de nós e da nossa realidade.
Refletir sobre si em uma sociedade que quer nos anestesiar é um ato de coragem. É lembrar que somos humanos.
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