O ciúme é, sem dúvida, o tema central e a força motriz de Dom Casmurro, de Machado de Assis. A obra inteira é uma construção narrativa que gira em torno da suspeita e do ciúme doentio do narrador, Bentinho, em relação à sua esposa, Capitu.
Aqui estão os pontos-chave sobre a questão do ciúme no romance:
1. O Ciúme como Fio Condutor da Narrativa
O livro é um "memorial" escrito por Bentinho já na velhice, onde ele tenta "atar as duas pontas da vida", ou seja, conectar sua juventude feliz com sua velhice solitária e amarga. O ciúme é o veneno que corrói essa trajetória. A narrativa não é uma busca imparcial pela verdade, mas sim uma tentativa de justificar seu próprio ciúme e convencer a si mesmo (e ao leitor) da traição de Capitu.
2. A Perspectiva Única e Duvidosa do Narrador
Tudo o que sabemos sobre os eventos é filtrado pela mente ciumenta de Bentinho. Ele é um narrador não confiável. Ele seleciona memórias, interpreta gestos e olhares, e apresenta "provas" que, para ele, são irrefutáveis, mas que para o leitor podem ser apenas indícios ambíguos.
Exemplo clássico: A famosa cena dos "olhos de ressaca" de Capitu. Para Bentinho, a forma como ela olha para seu melhor amigo, Escobar, é uma prova de uma conexão suspeita. No entanto, essa é a interpretação dele.
3. A Construção Gradual do Ciúme
O ciúme de Bentinho não surge de repente. Machado de Assis o constrói de forma magistral e gradual:
Ciúme Retrospectivo: Mesmo ao narrar a infância e a adolescência, o Bentinho mais velho já projeta suas suspeitas sobre o passado. Ele reinterpreta momentos de inocência como sinais precoces da "dissimulação" de Capitu.
Sementes da Dúvida: Pequenos incidentes, como um olhar, um braço nu de Capitu visto por outro homem, ou a amizade dela com Escobar, vão alimentando a paranoia do narrador.
A Influência de Terceiros: Personagens como o agregado José Dias, com seus comentários e insinuações ("olhos de cigana oblíqua e dissimulada"), ajudam a plantar as primeiras sementes da desconfiança na mente de Bentinho.
4. O Ciúme Patológico e a Tragédia
O ciúme de Bentinho evolui para uma obsessão que destrói tudo ao seu redor:
Amizade: Sua amizade com Escobar é corroída pela suspeita de que ele é o amante de sua esposa.
Amor Paterno: O auge de sua paranoia é a crença de que seu filho, Ezequiel, não é seu, mas sim de Escobar, devido a uma suposta semelhança física. Isso o leva a rejeitar e odiar o próprio filho.
Casamento e Família: O ciúme culmina na separação de Capitu, que é enviada para o exílio na Europa, e na destruição completa de sua família.
5. A Ambiguidade Intencional
A genialidade de Machado de Assis está em nunca confirmar a traição. O romance não oferece uma resposta definitiva. O objetivo não é saber se Capitu traiu ou não, mas sim expor a natureza destrutiva do ciúme. A dúvida é o elemento central. O livro é um estudo de caso sobre como o ciúme pode distorcer a realidade e envenenar a alma de uma pessoa a ponto de ela reescrever sua própria história para validar seus sentimentos.
Em resumo, o ciúme em Dom Casmurro é o protagonista oculto da história. É uma força que molda a memória, define a identidade do narrador e serve como o motor para a tragédia que se desenrola, deixando o leitor para sempre na dúvida sobre a verdade dos fatos.
